Produção de biogás a partir do aproveitamento energético dos resíduos orgânicos
Tempo de leitura: aproximadamente 16m40s
A digestão anaeróbia é o processo de produção de biogás que ocorre em consequência direta de uma série de interações metabólicas, devido a atuação de diversos grupos de microrganismos. Neste artigo, é apresentado um breve panorama do processo e das tecnologias para biodigestão de resíduos orgânicos. Boa leitura!
Aproveitamento energético dos resíduos orgânicos
Autor: Prof. Dr. Fabio Rubens Soares
A digestão anaeróbia (DA) pode ser definida como a conversão de material orgânico em dióxido de carbono, metano e o digerido através de bactérias, em um ambiente pobre em oxigênio.
Este processo é o mesmo que ocorre num aterro sanitário, porém, é acelerado através de equipamentos projetados para otimizar as condições da reação de forma a aumentar sua velocidade. O gás obtido durante a digestão anaeróbia, chamado de biogás, inclui além do metano e do dióxido de carbono, alguns gases inertes e compostos sulfurosos. A digestão anaeróbia é consequência de uma série de interações metabólicas com a atuação de diversos grupos de microrganismos. A produção de metano ocorre em um espectro amplo de temperaturas, mas aumenta significativamente em duas faixas, ditas mesofílica – entre 25-40°C, e termofílica – entre 50-65°C. A Figura 1 mostra um esquema simplificado de um processo de digestão anaeróbia.
Figura 1 - Processo de Digestão Anaeróbia de RSU
A maioria dos sistemas de digestão anaeróbia necessita de uma fase de pré-tratamento da carga de entrada na qual são separados os resíduos não digeríveis. A separação garante a remoção de materiais recicláveis, como vidros, metais e resíduos indesejáveis. Dentro do digestor a carga é diluída para atingir o teor de sólidos desejado e aí permanece durante o tempo de retenção designado (em torno de 20 dias). Para a diluição, uma ampla variedade de fontes de água pode ser utilizada, como água limpa, água de esgoto ou líquido recirculante do efluente de digestor. Frequentemente há a necessidade de um trocador de calor a fim de manter a temperatura no vaso de digestão. As impurezas do biogás são retiradas para que o produto esteja de acordo com a necessidade de sua aplicação. No caso de tratamento residual, o efluente do digestor é desidratado e o líquido é reciclado para ser usado na diluição da carga de alimentação. Os biossólidos são aerobicamente tratados para a obtenção do produto composto, estabilizados para serem depositados em aterros ou usados como combustível para incineração.
A quantidade de biogás produzida depende, entre outros fatores, da tecnologia empregada na digestão. A usina de Tilburg, na Holanda, por exemplo, pode alcançar 106 m3/t de resíduos (75% de restos de alimentos e de jardim e 25% de papel não reutilizável), com um teor de 56% de metano. A Kompogas, fabricante de biodigestores, sugere, como média, o valor de 120 m3 de biogás por tonelada de material orgânico. Considerando-se essas referências e a proporção de matéria orgânica na quantidade de resíduos gerados, pode-se afirmar que entre 60 a 75 m³ de biogás são produzidos por tonelada de resíduo em um processo de digestão anaeróbia. A composição típica do biogás assim produzido é apresentada na Tabela 1.
Tabela 1 - Composição típica do biogás
Da mesma forma que na recuperação de gás do aterro, o biogás pode ser consumido diretamente, situação em que apresenta poder calorífico entre 19 e 25 MJ/Nm3, ou tratado para separação e apro- veitamento do metano, cujo poder calorífico é semelhante ao do gás natural. Em termos elétricos, considerando a eficiência elétrica do motor de cogeração de 35% na conversão de energia térmica para energia elétrica, podem ser obtidos entre 50 e 150 kWh por tonelada de resíduo, dependendo do conteúdo energético do material orgânico.
O processo de decomposição biológica natural que ocorre na biodigestão anaeróbia tem sido amplamente utilizado em vários países. Desde o século passado este tipo de tratamento tem sido utilizado para o lodo de esgoto e, mais recentemente, muitas experiências têm sido feitas com a digestão anaeróbia de resíduos rurais e esgotos industriais.
A digestão anaeróbia, como processo industrial, surgiu na Índia em 1859, e até 1920, era muito utilizada em lagoas anaeróbias. Com o avanço do conhecimento do processo, foram desenvolvidos reatores com condições adequadas para atingir melhor eficiência e aceleração do processo. Os estudos de Buswell, entre outros sobre microbiologia, permitiram identificar as bactérias anaeróbias apropriadas e as condições específicas para promover a produção de biogás.
Nos últimos anos, o estudo da biodigestão anaeróbia de RSU foi intensificado, fazendo com que grande número de plantas piloto e em escala comercial fossem construídas, principalmente na Europa devido a dois fatores principais: os altos custos da energia e as restrições ambientais, especialmente no que diz respeito ao controle e proibição de disposição de matéria orgânica em aterros sanitários, bem como às dificuldades para a implantação de novos aterros ou à expansão dos existentes.
O processo operacional da biodigestão anaeróbia é composto de quatro etapas:
-
- pré-tratamento;
- digestão dos resíduos;
- recuperação do biogás;
- tratamento dos rejeitos.
Em geral, é necessário pré-tratamento dos resíduos para obter uma biomassa homogênea. Este pré-tratamento envolve a separação ou triagem dos materiais não biodegradáveis e trituração.
O projeto de instalação de um sistema de digestão anaeróbia baseia-se nas características operacionais do processo, na quantidade de água para diluição, na taxa de alimentação e no tempo de retenção, buscando-se sempre minimizar as perdas de biomassa.
No biodigestor, a massa é misturada constantemente para alcançar o conteúdo de sólidos desejado, e permanece retida no interior do reator por tempo determinado. Para a diluição utiliza-se água ou lodo de esgoto (biomassa biológica) ou a própria recirculação do líquido efluente do reator.
No processo termofílico, normalmente se requer um trocador de calor para manter a temperatura de reação entre 55ºC e 60ºC. O biogás obtido é então purificado e armazenado para utilização. Caso o efluente sólido do biodigestor apresente umidade muito elevada, utiliza-se um processo de deságue para o seu descarte e o efluente líquido pode ser reutilizado ou enviado para tratamento. A biomassa residual do processo deve receber tratamento aeróbio para obtenção de um composto de qualidade que pode ser utilizado como fertilizante.
Ainda os seguintes parâmetros devem ser considerados para o controle no processo anaeróbio:
-
- Composição dos resíduos e concentração de sólidos voláteis - Os sólidos voláteis são o resultado da subtração dos sólidos totais e das cinzas obtidas após combustão completa dos resíduos. Os sólidos voláteis são subdivididos em sólidos voláteis biodegradáveis e sólidos voláteis refratários. O conhecimento da fração de biodegradáveis ajuda na melhor definição da biodegradabilidade dos resíduos, da geração de biogás, da taxa de aplicação orgânica e da relação entre carbono e nitrogênio. A lignina é um material complexo de difícil degradação por bactérias anaeróbias e constitui basicamente a fração dos refratários nos resíduos orgânicos municipais.
- Sólidos totais e taxa de aplicação orgânica ou taxa de alimentação - O conteúdo máximo de sólidos totais na carga de materiais para o biodigestor pode ser de até 40%. A taxa de aplicação orgânica é a medida da capacidade de conversão biológica de um processo de biodigestão anaeróbia e sua unidade de medida é usualmente kgSV/m³.d. Se alimentarmos um sistema acima da taxa de aplicação orgânica sustentável poderá ocorrer a perda de eficiência da reação e, consequentemente, baixa produção de biogás devido ao acumulo de substâncias inibidoras da reação como ácidos graxos no interior do digestor.
Em sistemas contínuos, a taxa de aplicação orgânica é um parâmetro de controle muito importante. Processos de biodigestão anaeróbia foram avaliados por Gallert et al. (2003) onde: foram observadas para resíduos verdes coletados seletivamente taxas acima de 8,5 DQO/m³.d. No entanto, para taxas mais elevadas acima de 15 kg DQO/m³.d, observou-se acidificação do reator:- o pH da mistura deve ser mantido entre 6,5 e 8,5;
- a velocidade de elevação da temperatura da biodigestão não deve ser maior que 1 ºC/dia, pois incrementos maiores do que essa taxa podem causar choque térmico na reação;
- a relação C/N representa a relação entre as quantidades de carbono e de nitrogênio presentes na matéria orgânica. O valor ótimo para a relação C/N deve estar entre 20 e 30. Valores mais altos indicam rápido consumo de nitrogênio pelas bactérias metanogênicas, o que resulta em perda de eficiência do processo e baixa produção de biogás;
- o tempo de retenção ou de detenção hidráulico (TDH) é o tempo mínimo de retenção que normalmente varia entre 15 a 20 dias. Dependendo da taxa de aplicação orgânica dos tipos de resíduos carregados no biodigestor, das proporções em sua mistura, da diluição do material no biodigestor e do tipo do biodigestor, a retenção pode ser estendida para o processo alcançar o máximo de eficiência;
- a concentração de amônia resultante da degradação das proteínas, não deve ser superior a 3.000 mg/l na forma iônica e a 150 mg/l na forma de NH3 livre;
- a mistura é essencial para se obter uma condição homogênea em todo o reator com relação ao pH, temperatura interna de rea- ção e concentração de ácidos voláteis. O tipo de reator depende da homogeneidade requerida e do teor de sólidos contidos na massa do reator.
Na Figura 2 pode ser visto um diagrama esquemático da transformação de resíduos orgânicos em biogás.
Figura 2: Obtenção de biogás de RSU
A recuperação energética de resíduos orgânicos é uma temática extremamente importante para o país para o desenvolvimento de uma matriz enegética mais eficiente e certamente contribui para a minimização do descarte desses resíduos assim como seu aproveitamento para produção de energia.
O Brasil encontra-se hoje numa posição um pouco mais avançada na recuperação energpetica de resíduos animais onde o setor agropecuário esta mais avançado.
No caso de aproveitamento energético de resíduos sólidos urbanos estamos ainda numa fase embrionária, no entanto o desenvolvimento de responsabilidades ambientais mais restritivas colaborarão para a aplicação de tecnologias de biodigestão anaeróbia no país.
Certamente a contribuição tecnológica da produção de biogás colabora para a mitigação das emissões de gases de efeito estufa que contribuem para o indesejado aquecimento global e contribui para a ampliação da utilização de energuias renováveis no Brasil.
-
- AQUINO, S. F.; PEREIRA GOMES, F. C. S.; COLTURATO, L. F. D. B. Biometanização seca de resíduos sólidos urbanos: estado da arte e análise crítica das principais tecnologias. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, jul./set. 2012.
- BIDONE, F. R. A.; POVINELLI, J. Conceitos básicos de resíduos sólidos. São Carlos: EESC/USP, 1999.
- BOSCOV, M. E. G. Geotecnia Ambiental. São Paulo: Oficina de Textos, 2008.
- BRABER, K. Anaerobic digestion of municipal solid waste: a modern waste disposal option in the verge of breakthrough. Biomass and Bioenergy, s. l, v. 9, n. 1-5, p. 365-376, 1995.
- CAMPOS, H. K. T. Renda e evolução da geração per capita de resíduos sólidos no Brasil. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, s. l, v. 17, n. 2, p. 171-180, abr./jun. 2012.
- CARTER, W. SAPRC – atmospheric chemical mechanisms and VOC reactivity scales. USA: University of California, 2012.
- DE BAERE, L. State-of-the-art of anaerobic digestion of municipal solid waste. In: Ninth International Waste Management, 2012.
- GALLERT, C.; HENNING, A.; WINTER, J. Scale-up of anaerobic digestion of the biowaste fraction from domestic wastes. Water research, v. 37, n. 6, p. 1433-1441, 2003.
- GOLDEMBERG, J. Energia e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Blucher, 2010.
- GREBEN, H.; BURKE, L. M.; SZEWCZUK, S. Biogas, as a renewable energy source, produced during the anaerobic digestion of organic waste, ISES (International Solar Energy Society). Solar World Conference. Joanesburgo, África do Sul, 11-14 out. 2009, p. 1-9.
- HINRICHS, R. A.; KLEINBACH, M.; REIS, L. B. Energia e meio ambiente. São Paulo: Cengage Learning Brasil, 2010.
- MATTSSON, B.; SONESSON, U. Environmentally-friendly food processing. Cambridge: Woodhead Publishing Limited, 2003.
- MUYLAERT, M. S.; et al. Consumo de energia e aquecimento do planeta. Rio de Janeiro: Ed. COPPE/UFRJ, 2000.
- NAZAROFF, W. W.; ALVAREZ-COHEN, L. Environmental engineering science. New York: John Wiley & Sons, 2001.
- NICHOLS, C. E. Overview on anaerobic digestion technologies in Europe. Biocycle, v. 45, n. 1, p. 47, jan. 2004.
- OLIVEIRA, L. B.; ROSA, L. P. Brazilian waste potential: energy, environmental, social and economic benefits. Energy Policy, v. 31, n. 14, p. 1481-1491, nov. 2003.
- RYDING, S. . Environmental product development. Stockholm: Federation of Swedish Industries, 1995.
- SERÔA DA MOTTA, R.; CHERMONT, L. Texto para discussão nº416. Aspectos econômicos da gestão integrada de resíduos sólidos. Rio de Janeiro: Ipea, maio 1996. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 23 out. 2014.
- SILVA LORA, E. E.; VENTURINI, O. J. Biocombustíveis. Rio de Janeiro: Interciência, 2012.
- SMITH, V. K. Time and valuation of environmental. Discussion paper 98-07. Resources for the Future, Washington, nov. 1997. Disponível em: <http://www.rff.org/RFF/Documents/RFF-DP-98-07.pdf>. Acesso em: 23 out. 2014.
- SÖDERMAN, M. L. Recovering energy from waste in Sweden – a systems engineering study. Resources, Conservation and Recycling, v. 38, n. 2, p. 89-121, maio 2003.
- TAN, R. B. H.; KHOO, H. H. Impact assessment of waste management options in Singapore. Journal of the Air & Waste Management Association, v. 56, n. 3, p. 244- 254, mar. 2006.
- THEMELIS, N. J. An overview of the global waste-to-energy in- dustry. Waste Management World, p. 40-47, jul./ago. 2003.
- THEMELIS, N. J.; KAUFMAN S. M. Waste in a land of plenty – solid waste generation and management in the US. Waste Management World, p. 23-28, set./out. 2004.
- TOLMASQUIM, M. T. Fontes renováveis de energia no Brasil. Rio de Janeiro: Interciência, 2003.
- WORLD ENERGY COUNCIL. Executive summary. World Energy Council, p. 1-16, 2007. Disponível em: <http://www. worldenergy.org/publications?year=2007&s=executive+summary>.Acessoem: 24 de otubro de 2010.
Prof. Dr. Fabio Rubens Soares
Possui graduação em Engenharia Química, Administração de Negócios, Pós Graduação em Gestão Ambiental, Mestrado em Gestão Ambiental e Doutorado em Energia e Pós Doutorado no Instituto de Energia e Ambiente da USP.
Diretor da ENVIROSERVICES oferece serviços de Consultoria, Projetos e Treinamentos em Meio Ambiente e Bioenergia (Biogás) para empresas, governo e micro empresas com ênfase em recuperação energética de resíduos, especialmente na produção de biogás por meio de dejetos animais e suinoculturas. Contato: enviroservices.com.br Telefone: (11) 99948-9832
Gostou do assunto?
Quer saber mais sobre o biogás no Brasil?
Autor: Prof. Dr. Fabio Rubens Soares
Publicado em: 07 de outubro de 2021.
Este artigo não é de autoria do Portal Energia e Biogás, desta forma, os créditos e responsabilidades sobre o seu conteúdo são do autor. O Portal Energia e Biogás disponibiliza o espaço Comunidades & Produtores de Biogás para que especialistas publiquem conteúdos técnicos e de opinião relacionados com o mercado de biogás e biometano. Os textos são avaliados pela equipe de redação do portal, que define possibilidade de publicação. Os conteúdos de opiniões enviados e publicados nesse espaço não refletem necessariamente a opinião do Portal Energia e Biogás.
AVISO! O espaço para comentários é destinado ao debate saudável de ideias. Não serão aceitas postagens com expressões inapropriadas ou agressões pessoais à equipe da publicação, a outro usuário ou a qualquer grupo ou indivíduo identificado. Caso isso ocorra, nos reservamos o direito de apagar o comentário para manter um ambiente respeitoso para a discussão.