O uso de bagaço de cana-de-açúcar para produção de biogás

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Isabella Grando destaca as características do processo e os benefícios para produção de biogás a partir do bagaço de cana-de-açúcar.

O uso de bagaço de cana-de-açúcar para produção de biogás
Foto: by Canva PRO (artist: Mailson Pignata)
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Comunidades & Produtores de Biogás
Setor Sucroenergético

O uso de bagaço de cana-de-açúcar para produção de biogás

Autora: Isabella Grando Zamboni

O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo e estima-se que 161 milhões de toneladas de bagaço de cana-de-açúcar tenham sido geradas no Brasil na safra de 2019/2020. O bagaço de cana-de-açúcar é gerado na etapa de moagem da cana-de-açúcar para obtenção do caldo de cana, utilizado para produção de açúcar e etanol. A maior parte desse bagaço de cana é utilizada no processo de cogeração, em que o bagaço produzido é utilizado como combustível para geração da energia elétrica utilizada pela usina. O excedente de bagaço pode ser utilizado na alimentação de ruminantes, na produção de briquetes/papel e, mais recentemente, na produção de etanol de segunda geração. Outro uso, ainda em estudo, é sua utilização para produção de biogás, através da digestão anaeróbia.

De forma simplificada, a digestão anaeróbia é um processo biológico de conversão de compostos orgânicos em biogás, que ocorre em várias etapas, por vários grupos de microrganismos, na ausência de oxigênio. Na digestão anaeróbia de bagaço de cana, o bagaço de cana (substrato) é misturado a uma fonte de microrganismos (inóculo). O inóculo pode ser um lodo anaeróbio (de estações de tratamento de esgoto ou de plantas de biogás), um fluido de ruminante (estrume, esterco ou líquido de rúmen), ou a combinação de ambos. A digestão anaeróbia de bagaço de cana é vantajosa por gerar produtos com valor agregado (digestatos sólido e líquido e o biogás), ser neutra em carbono, promover a criação de empregos e diversificar a matriz energética (o que conduz a um abastecimento mais seguro de energia). Além disso, para muitos países, o bagaço de cana e o inóculo são mais disponíveis, de acessibilidade mais fácil e de regeneração mais rápida que outros combustíveis (como o petróleo).

Os gargalos principais do processo de digestão anaeróbia de bagaço de cana estão ligados às características e à estrutura do bagaço de cana. O bagaço de cana é sólido e tem altas capacidades de absorção e retenção de água, fazendo com o mesmo absorva e retenha grande parte da água do reator. Esses fatores dificultam o desenvolvimento da digestão anaeróbia. Outro fator muito importante é sua estrutura. Como qualquer outro material lignocelulósico (como troncos e folhas de árvores, palhas de trigo e espigas de milho), o bagaço de cana possui uma estrutura complexa denominada lignocelulose na parede de suas células. Essa estrutura é composta principalmente por celulose, hemicelulose e lignina e é extremamente recalcitrante à degradação (difícil de degradar biologicamente) por diversos fatores (como o revestimento da celulose pela hemicelulose, a proteção da celulose pela lignina e a cristalinidade das microfibras de celulose).

A fim de contornar os gargalos desse processo, estudos recentes objetivaram realizar codigestões ou pré-tratamentos, sendo o segundo mais comum. O pré-tratamento é aplicado ao bagaço de cana antes da digestão anaeróbia e tem por objetivo romper parcialmente e desestabilizar a estrutura da lignocelulose, facilitando assim a digestão anaeróbia. As técnicas de pré-tratamento podem ser físicas, químicas ou biológicas. As técnicas físicas envolvem aplicação de calor, pressão, radiação, moagem ou a combinação desses, enquanto as técnicas químicas envolvem geralmente a aplicação de ácidos (como ácido sulfúrico e ácido clorídrico) ou bases (como hidróxido de sódio e hidróxido de cálcio). As técnicas de pré-tratamento biológicas envolvem geralmente a aplicação de enzimas e fungos. Frequentemente tem-se discutido se as técnicas de pré-tratamento realmente são alternativas viáveis. Isto é, se o aumento na produção de metano/biogás resultante da aplicação delas compensa os altos custos financeiros envolvidos por elas (implantação, operação, tratamento dos subprodutos gerados do processo, entre outros).

Estudos recentes indicaram a possibilidade de o processo de digestão anaeróbia de bagaço de cana ser acoplado a uma biorrefinaria, conceito análogo a uma refinaria de petróleo. O bagaço de cana sem pré-tratamento seria alimentado em um digestor anaeróbio com um inóculo. Controlando algumas condições do reator, os microrganismos degradariam praticamente somente a hemicelulose, produziriam biogás e desestabilizariam a estrutura do bagaço de cana. O restante da biomassa (digestato sólido), constituída principalmente por celulose e lignina, poderia passar pelo processo de sacarificação enzimática, em que a celulose seria hidrolisada. O resultado desse processo seria glicose e um resíduo rico em lignina. A glicose poderia ser utilizada para fabricação de etanol, enquanto o resíduo rico em lignina poderia ser usado para geração de eletricidade. O digestato líquido poderia ser utilizado como alimento para uma cultura de algas, que por sua vez poderia ser utilizada para geração de biodiesel.

Referências

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Sobre a autora

Isabella é Engenheira Química e Mestre em Ciências (Engenharia Química) pelo Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP. Tem experiência na área de digestão anaeróbia de lignocelulósicos para produção de biogás, montagem e monitoramento de reatores, análise composicional de lignocelulósicos e biogás.
Contato: isabella_grando@hotmail.com

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Autora: Isabella Grando Zamboni.
Publicado em:  12 de janeiro de 2022.

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